

DE MARIAS E LAMPIÕES

O narrador com balaio na cabeça toca os primeiros acordes da guitarra. Os balaios começam a surgir com efeito de uma máscara fantástica. O público vê ramas de galhos secos, caixas, cestos e peneiras tremerem . A mulher que diz ter visto um certo Lampião por ali passar surge em meio aos galhos, balaios e fresta das caixas empilhadas. Ela fala de um grupo de viajantes vindos de longe, de um lugar misterioso, seco, árido...”mas que tinham ali sua graça”. Ela sussurra o mistério , a guitarra treme os tempos de hoje, a sanfona os tempos de sempre. Todos querem contar que já viram o bando passar, até os objetos das casas e “budegas” também querem testemunhar. Tratam-se das fragmentadas memórias de uma das maiores sagas vividas no sertão brasileiro...a luta do cangaço.
As Marias são citadas no plural e a voz da atriz brincante traz a narrativa pela perspectiva de Maria Bonita, de diversas Marias Bonitas. Junto ao bando de atuadores acrobatas músicos ela se presentifica através da visão e voz dos povoados da catinga, os que tudo viam mas a história formal por fim, torna-os invisíveis.
Os três músicos também com domínio acrobático e de malabares se encarregam de montar todas imagens dessa narrativa de forma coral e sob efeito mimodinâmico. Tudo sonorizado ao vivo e encenado por meio da acrobacia de solo e equilíbrio, dança brincante, malabares de facão , ressignificação de objetos e recursos físicos e gestuais.
Em se tratando da tessitura dramatúrgica e rítmica , por ora vibram tempos dilatados em pura suspensão, como quando Lampião é pego numa emboscada e encara face a face um dos policiais “volantes” [chamados de “macacos” pelos cangaceiros na época], por ora um ritmo frenético e alucinante pela tradicional sanfona misturado aos ruídos elétricos da guitarra quando nos atos de fuga e saqueamentos. Os textos narrativos se dão em rima e estrutura de cordel, o côro dos três atuadores tratam das imagens de forte impacto por meio da dança acrobática [elementos da capoeira regional se incluem] e mímica em quadrinhos como ferramenta estética e de jogo trazendo a memória de Lampião e Maria Bonita como quadros mais alegóricos e fantásticos distante de uma linha dramática realista.
Todos se colocam narradores, manipulam os objetos de cena por várias funções e trazem um estado cênico trágico quando necessário , como forma de não omitir da criança o universo contraditório e por vezes cruel desse bando, bem como o que eles também passavam no meio da catinga seca. Trata-se de uma obra tragicômica para crianças e jovens sobre os bandos de resistência do cangaço.
Sobre Maria “De Marias e Lampiões” , como numa saga épica e fabular da literatura de cordel ,essa personagem surge em meio às arestas das caixas e galhos secos [na versão para palco, as caixas são de madeira e detém de portinholas e gavetas que abrem e fecham, para que o público veja os atores por entre os buracos e frestas]. Como quem representa o medo e curiosidade dos povoados que viam ou somente ouviam Lampião e seu bando,até que ela surge e vai ganhando força, presença e expressiva voz no bando.
Elementos da dança do cavalo marinho, capoeira e jongo paulista se misturam e se fazem presentes no início do espetáculo. Ao vestirem os balaios e dançarem, faz-se a imagem de que as cidades, suas mobílias e objetos tomam vida junto ao vai e vem dos moradores.

